No ligeiro dedilhar do teclado, no ruído
cadenciado que ecoa pelo ambiente e no espírito que parece se libertar do corpo
ao consumar a harmonia entre o som e o ritmo...
aí
está Israel da Sois Sgarbi, o gaiteiro serrano que toca com os dedos e com o
coração.
Aos 31 anos, a fala mansa, o jeito calmo
e discreto de um típico canceriano, de longe não deixam transparecer o fervor e
a emoção que emergem de seus dedos e de todo ele próprio na hora em que toca
sua gaita. Como numa espécie de transe, nada mais importa, apenas transmitir o
sentimento da música e as energia de suas notas.
Seu gosto pela música iniciou ainda na
infância. Nasceu em Caxias do Sul, porém toda sua vida sempre esteve ligada a
São Francisco de Paula, e foi na Cabanha Capão da Ferradura, no Distrito de Eletra que teve início a paixão pelo acordeon.
Na infância solitária do campo, Israel foi uma criança tranquila. Na sua
imaginação inocente, desde cedo o gado e os cavalos foram suas companhias. “As
coisas apenas mudaram de tamanho. Antes eu brincava com reses de plástico, hoje
elas são de verdade”, conta. Aos 10 anos começou a tocar. “Estava um dia na
sala da minha casa brincando com a fazendinha, os cavalos e percebi um enorme
silêncio, por um instante senti um vazio por dentro, então fui até a eletrola,
vi os discos que meu avô tinha e por acaso, coloquei o disco dos Irmãos
Bertussi para tocar”.
Naquela ocasião, a criança jamais
poderia supor que aquele gesto espontâneo para espantar a solidão mudaria para
sempre sua vida. “A partir daquele dia fui
tomando gosto pela música”, recorda.
No
começo: os mestres
“Eu
não queria me apresentar, mas minha mãe praticamente me obrigou.”
Nunca gostou de barulho, sons
estridentes, talvez por isso a identificação imediata com a gaita, de som calmo
e ao mesmo tempo envolvente. E assim foram surgindo as primeiras notas e
apresentações. Alguns de seus mestres, renomados na música e na tradição, deixaram
seu legado para Israel. Nomes como Honeyde Bertussi, Oscar dos Reis, Paulo
Siqueira, Osvaldinho do Acordeon, Luciano Maia e Adelar Bertussi, contribuíram
ainda mais na formação musical e no amor pela cultura gaúcha.
Na Escola Musical Villa Lobos e na
Sociedade de Cultura Musical de Caxias do Sul aos poucos as teorias e
partituras foram se tornando elementos comuns do seu dia-a-dia. E num piscar de
olhos, o jovem gaiteiro inicia seus shows e apresentações.
Em 1992, durante as comemorações da
Semana Farroupilha, na agência do banco Banrisul, no bairro Lurdes, em Caxias
do Sul, Israel teve pela primeira vez, aos 11 anos a sensação que sentiria
muitas vezes mais tarde: a de apresentar seu talento para o público. “Na época
eu só sabia tocar umas três músicas, três valsinhas simples, e eu não queria me
apresentar, mas minha mãe insistiu tanto, praticamente me obrigou então eu tive
que ir”, relembra.
A
música e outras paixões
“Compor
uma obra é uma coisa abençoada por Deus.”
Para Israel a música é uma missão
divina, um privilégio para pouquíssimas pessoas. “Compor uma obra é uma coisa
abençoada por Deus”. E por isso o gaiteiro pode se considerar muito abençoado.
A sua primeira composição, feita aos 10 anos, integra as mais de 50 canções
criadas por ele, entre letras, melodias e composições completas (letra e música).
Entre as composições está a recém
vencedora do Festival Cante uma Canção para São Chico, que ocorreu durante o 17º
Rodeio Interestadual de São Francisco de Paula, em dezembro do ano passado. A
obra “Canto a São Chico”, foi composta por Israel quando este tinha apenas 21
anos e até então era inédita para o público. Na música, o gaiteiro homenageia
as belezas do município, dando destaque para a topografia dos Campos de Cima da
Serra. Um dos versos retrata bem a vida nos pampas serranos; “Em cima da serra
onde eu vivo é um lugar de primeira, tem peão trabalhador e prendinha
dançadeira. Tem boi gordo no campo e vaca de leite na mangueira.”
Para compor uma obra, o músico explica o
que é necessário. “No processo de composição das minhas músicas eu preciso de
silêncio, de estar bem comigo mesmo”. Segundo ele, a música nasce de maneira
aleatória. “Vou escrevendo trechos da música, depois encaixo eles e vejo qual a
melhor ordenação”. O acordeonista segue quatro vertentes musicais, a música
gaúcha tradicionalista, a clássica (ou erudita), a argentina (tangos, chamamés
e milongas) e a MPB. “Passeio por essas quatro vertentes e me sinto à vontade
em todas elas”, conta.
O Gaiteiro ressalta o valor da obra que
tantos aqui no sul executam, segundo ele, essa arte atemporal possui ritmo,
harmonia e boa melodia. E conta que sua
relação com a música não é somente nutrida por amor, mas também por respeito. “Respeito
muito a música, ela me dá tudo o que eu preciso. Me faz ocupar a mente, que
muitas vezes pode ser minha pior inimiga, e também me faz evoluir e melhorar
como pessoa”, explica.
Além da música, os cavalos são sua
paixão, e a vida no campo é algo que o inspira. “O campo é um grande professor,
ele te ensina a aceitar. Aceitar a vida, a morte, o inverno e o verão. Ele me
ensinou a aceitar sem esbravejar e a enxergar a vida de uma maneira adulta.
Como no campo, a vida é feita de safras, e eu aprendi que a gente colhe o que
planta. Procuro transpor para minha vida tudo que aprendi no campo”.
O
erro que virou acerto
“O
jornalismo na minha vida foi um erro muito interessante”.
Mesmo com o talento florescendo a cada
dia, a profissão musical demorou para ser aceita pelo acordeonista. “Custei
para aceitar que meu destino fosse a música, mas tudo são consequências do que
vivi no passado. Se hoje colho coisas boas, foi porque plantei coisas boas. Se
hoje posso tocar em qualquer lugar é graças às horas e horas que me dediquei
praticando”, afirma.
Aos 19 anos tudo que Israel queria era
tocar sua gaita. “Nessa época minha mãe me balançou e veio com aquele discurso
de que não é possível viver de música. Então saí da fazenda e fui estudar em
Caxias”. O interesse maior era por veterinária, como não passou no vestibular,
resolveu prestar a prova para jornalismo. “Tudo isso foi muito bom, porque o
jornalismo me possibilitou aprender a expressar melhor as minhas idéias através
da voz e não somente pelas notas musicais”, conta.
Como do destino não dá para fugir, eis
que a música falou mais alto. “Eu sempre tive esse gancho com a arte nas mídias
que trabalhei, e trabalhei em praticamente todas elas. Apresentei o programa
Arte e Tradição na TV Câmara de Caxias e lá eu levava grandes gaiteiros que já
eram famosos, conjuntos novos que estavam começando, conjuntos velhos, isso
formava uma integração na música tradicionalista. O jornalismo na minha vida foi
um erro muito interessante, ele agregou valor à minha arte e me fez enxergar
mais o lado social, e valorizar as pessoas”.
Da
música para o fogão
“Me viro muito bem na cozinha.”
Poucos sabem, mas das mãos que
reproduzem as canções, outras habilidades também vão surgindo. Nas horas vagas
a cozinha é o lugar com que o gaiteiro mais se identifica. “Gosto muito de
cozinhar, não só de fazer aquela “comida de sempre”, gosto de criar pratos
elaborados, molhos especiais. Me viro muito bem na cozinha”, revela.
Quando não está praticando sua música
nem na lida com os cavalos, os filmes também detém a atenção de Israel. Filmes
de época, de ação e alguns nacionais que retratam a saga gaúcha são seus
preferidos.
As
influências
“Todos os lugares onde as pessoas
gostarem e receberem bem a minha música serão especiais para mim”.
Seus gostos e influências musicais são
bastante variados. Vão desde Paulito Barbosa, Soledad, Irmãos Bertussi até Paula
Fernandes, música country, moda de viola, sertanejo de raiz, samba de raiz e
música clássica. Entre suas canções prediletas está o Cancioneiro das Coxilhas,
dos Irmãos Bertussi. “Essa música marcou minha vida”, diz.
Muitos são seus ídolos, entre eles admira
Luiz Carlos Borges, diretor do Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore. “Em
termos de música, pois ele toca em vários lugares, qualquer estilo, e também
como pessoa, procuro me espelhar nele”, acrescenta.
Até hoje muitos foram seus shows, bailes
e apresentações. Israel passou por diversos lugares e todos representam muito
para ele. “Gostei muito de ter tocado no Paiol, em Caxias do Sul, no Teatro
Guaíra, em Curitiba, junto com Osvaldinho do Acordeon, Renata Sbrigui, Frank
Marroco, Paolo Gandolfi e Marco Patarime. Mas todos os lugares onde as pessoas
gostarem e receberem bem a minha música serão especiais para mim, desde um
galpão de chão batido até um lugar como o Teatro Guaíra”, afirma.
Os
planos e os medos
“Eu
não preciso de muito para ser feliz, mas de um pouquinho verdadeiro”.
Segundo Israel, seu maior sonho é
alcançar a evolução sem perder a tradição. Para este ano de 2012, o gaiteiro
afirma, “Quero tocar muito, viver minha música intensamente”. E confessa, “eu
não preciso de muito para ser feliz, mas de um pouquinho verdadeiro. Como já
disse, o futuro é o que eu planto hoje; acho que estou plantando coisa
boa”.
Apenas uma coisa lhe causa temor. “Tenho
muito medo da ignorância da humanidade, de como as pessoas podem ser más e
cruéis por isso”, comenta.
A
gratidão e o cuidado com os que ama
“Espero
que quando eu ficar velho também tenha alguém que faça um pouco por mim, que
não me deixe atirado num canto como uma gaita velha e sem serventia”.
A sensibilidade ultrapassa os limites
musicais, ao conhecer melhor esse gaiteiro de jeito discreto e introspectivo
ele vai aos poucos revelando o amor e a gratidão por quem lhe é importante.
“Amo muito minha família, meus bichos, minha música. Cuido das pessoas que
fizeram muito por mim. Para os meus avós procuro fazer um pouquinho, isso é o
mínimo que posso fazer por quem me tornou o que sou hoje. Espero que quando eu
ficar velho também tenha alguém que faça um pouco por mim, que não me deixe
atirado num canto como uma gaita velha e sem serventia”.
O
professor
“Eu encilho o cavalo, mostro a
invernada e as reses, mas a campereada é por conta deles”.
O acordeonista é também professor.
Ensina várias pessoas, de várias idades, homens, mulheres, jovens e crianças. Na
relação que mantém com seus alunos, ele procura deixá-los à vontade. “Tive um
professor que me apresentou o mundo da gaita, as partituras, que me fez ainda
mais tomar gosto pela música, mas seu sistema era quase um regime militar”,
brinca. No âmbito de ensino-aprendizado, Israel deixa claro qual é o seu papel.
“Eu encilho o cavalo, mostro a invernada e as reses, mas a campereada é por
conta deles, eles que saberão até onde querem ir”.
Muitos de seus alunos também o
acompanham na Associação de Acordeonistas e Gaiteiros de São Francisco de Paula
e dos Campos de Cima da Serra, que completará seu primeiro aniversário em abril
de 2012. “A tradição dos gaiteiros de cima da serra é única, ímpar,
incomparável. Não é por acaso que daqui saíram grandes nomes da música
tradicionalista. Até hoje vemos muitos talentos escondidos, não é fácil
encontrar tanta gente que toque um repertório tão variado num local tão
pequeno, por isso surgiu a Associação”, explica.
O
Grande Arquiteto do Universo
“Do
espiritismo me convém crer na ideia que tudo acontece por um motivo”.
A espiritualidade é algo muito presente na
vida do músico. De batismo católico, mas com muitas pinceladas do espiritismo,
ele vai criando a sua própria doutrina. “Acredito que exista o grande Arquiteto
do Universo, que criou e planeja as coisas. Do espiritismo me convém crer na
ideia que tudo acontece por um motivo, de que as pessoas que estão na nossa
vida têm um motivo de estar, mas penso que é preciso viver o hoje, o agora da
melhor maneira possível, vai saber se existe mesmo o outro lado, ou outras vidas,
afinal, ninguém voltou ainda para contar”, brinca.
As
Anitas de Israel
“Ela
é guerreira e batalhadora, tudo isso sem perder a feminilidade”.
-“Já terminou? Ah, eu tinha preparado
uma resposta na ponta da língua se tu fosse me perguntar do amor.” (risos)
-“Então tá, e o amor Israel?”
Apesar do tom de graça, o acordeonista
leva o assunto muito a sério e conta pausadamente, dando ênfase a cada nome.
“Ana-Maria-de-Jesus-Ribeiro, a Anita Garibaldi. Ela é aquela mulher que vai pra
guerra junto contigo, que cuida dos ferimentos dos soldados, ela é guerreira e
batalhadora, tudo isso sem perder a feminilidade. Ela constrói as coisas
contigo, cuida dos filhos, é uma esposa dedicada, é uma amiga, enfrenta todos
os problemas junto contigo e ainda assim não perde a ternura e a delicadeza”.
-“E essa Anita já apareceu na tua vida?”
- “Bom, na verdade várias Anitas
passaram pela minha vida, cada uma com algumas dessas características, mas não
eram Anitas completas. Sou muito cuidadoso... essa Anita de verdade eu não
encontrei ainda”.
15/Fev/2012
*Texto e foto KARINE KLEIN/ ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO