sexta-feira, 23 de março de 2012

Perfil- O gaiteiro que toca com os dedos e com o coração



No ligeiro dedilhar do teclado, no ruído cadenciado que ecoa pelo ambiente e no espírito que parece se libertar do corpo ao consumar a harmonia entre o som e o ritmo...
aí está Israel da Sois Sgarbi, o gaiteiro serrano que toca com os dedos e com o coração.
Aos 31 anos, a fala mansa, o jeito calmo e discreto de um típico canceriano, de longe não deixam transparecer o fervor e a emoção que emergem de seus dedos e de todo ele próprio na hora em que toca sua gaita. Como numa espécie de transe, nada mais importa, apenas transmitir o sentimento da música e as energia de suas notas.
Seu gosto pela música iniciou ainda na infância. Nasceu em Caxias do Sul, porém toda sua vida sempre esteve ligada a São Francisco de Paula, e foi na Cabanha Capão da Ferradura, no Distrito de Eletra que teve início a paixão pelo acordeon. Na infância solitária do campo, Israel foi uma criança tranquila. Na sua imaginação inocente, desde cedo o gado e os cavalos foram suas companhias. “As coisas apenas mudaram de tamanho. Antes eu brincava com reses de plástico, hoje elas são de verdade”, conta. Aos 10 anos começou a tocar. “Estava um dia na sala da minha casa brincando com a fazendinha, os cavalos e percebi um enorme silêncio, por um instante senti um vazio por dentro, então fui até a eletrola, vi os discos que meu avô tinha e por acaso, coloquei o disco dos Irmãos Bertussi para tocar”.
Naquela ocasião, a criança jamais poderia supor que aquele gesto espontâneo para espantar a solidão mudaria para sempre sua vida.  “A partir daquele dia fui tomando gosto pela música”, recorda.

No começo: os mestres
“Eu não queria me apresentar, mas minha mãe praticamente me obrigou.”

Nunca gostou de barulho, sons estridentes, talvez por isso a identificação imediata com a gaita, de som calmo e ao mesmo tempo envolvente. E assim foram surgindo as primeiras notas e apresentações. Alguns de seus mestres, renomados na música e na tradição, deixaram seu legado para Israel. Nomes como Honeyde Bertussi, Oscar dos Reis, Paulo Siqueira, Osvaldinho do Acordeon, Luciano Maia e Adelar Bertussi, contribuíram ainda mais na formação musical e no amor pela cultura gaúcha.
Na Escola Musical Villa Lobos e na Sociedade de Cultura Musical de Caxias do Sul aos poucos as teorias e partituras foram se tornando elementos comuns do seu dia-a-dia. E num piscar de olhos, o jovem gaiteiro inicia seus shows e apresentações.
Em 1992, durante as comemorações da Semana Farroupilha, na agência do banco Banrisul, no bairro Lurdes, em Caxias do Sul, Israel teve pela primeira vez, aos 11 anos a sensação que sentiria muitas vezes mais tarde: a de apresentar seu talento para o público. “Na época eu só sabia tocar umas três músicas, três valsinhas simples, e eu não queria me apresentar, mas minha mãe insistiu tanto, praticamente me obrigou então eu tive que ir”, relembra.

A música e outras paixões
“Compor uma obra é uma coisa abençoada por Deus.”

Para Israel a música é uma missão divina, um privilégio para pouquíssimas pessoas. “Compor uma obra é uma coisa abençoada por Deus”. E por isso o gaiteiro pode se considerar muito abençoado. A sua primeira composição, feita aos 10 anos, integra as mais de 50 canções criadas por ele, entre letras, melodias e composições completas (letra e música).
Entre as composições está a recém vencedora do Festival Cante uma Canção para São Chico, que ocorreu durante o 17º Rodeio Interestadual de São Francisco de Paula, em dezembro do ano passado. A obra “Canto a São Chico”, foi composta por Israel quando este tinha apenas 21 anos e até então era inédita para o público. Na música, o gaiteiro homenageia as belezas do município, dando destaque para a topografia dos Campos de Cima da Serra. Um dos versos retrata bem a vida nos pampas serranos; “Em cima da serra onde eu vivo é um lugar de primeira, tem peão trabalhador e prendinha dançadeira. Tem boi gordo no campo e vaca de leite na mangueira.”
Para compor uma obra, o músico explica o que é necessário. “No processo de composição das minhas músicas eu preciso de silêncio, de estar bem comigo mesmo”. Segundo ele, a música nasce de maneira aleatória. “Vou escrevendo trechos da música, depois encaixo eles e vejo qual a melhor ordenação”. O acordeonista segue quatro vertentes musicais, a música gaúcha tradicionalista, a clássica (ou erudita), a argentina (tangos, chamamés e milongas) e a MPB. “Passeio por essas quatro vertentes e me sinto à vontade em todas elas”, conta.
O Gaiteiro ressalta o valor da obra que tantos aqui no sul executam, segundo ele, essa arte atemporal possui ritmo, harmonia e boa melodia.  E conta que sua relação com a música não é somente nutrida por amor, mas também por respeito. “Respeito muito a música, ela me dá tudo o que eu preciso. Me faz ocupar a mente, que muitas vezes pode ser minha pior inimiga, e também me faz evoluir e melhorar como pessoa”, explica.
Além da música, os cavalos são sua paixão, e a vida no campo é algo que o inspira. “O campo é um grande professor, ele te ensina a aceitar. Aceitar a vida, a morte, o inverno e o verão. Ele me ensinou a aceitar sem esbravejar e a enxergar a vida de uma maneira adulta. Como no campo, a vida é feita de safras, e eu aprendi que a gente colhe o que planta. Procuro transpor para minha vida tudo que aprendi no campo”.

O erro que virou acerto
“O jornalismo na minha vida foi um erro muito interessante”.

Mesmo com o talento florescendo a cada dia, a profissão musical demorou para ser aceita pelo acordeonista. “Custei para aceitar que meu destino fosse a música, mas tudo são consequências do que vivi no passado. Se hoje colho coisas boas, foi porque plantei coisas boas. Se hoje posso tocar em qualquer lugar é graças às horas e horas que me dediquei praticando”, afirma.
Aos 19 anos tudo que Israel queria era tocar sua gaita. “Nessa época minha mãe me balançou e veio com aquele discurso de que não é possível viver de música. Então saí da fazenda e fui estudar em Caxias”. O interesse maior era por veterinária, como não passou no vestibular, resolveu prestar a prova para jornalismo. “Tudo isso foi muito bom, porque o jornalismo me possibilitou aprender a expressar melhor as minhas idéias através da voz e não somente pelas notas musicais”, conta.
Como do destino não dá para fugir, eis que a música falou mais alto. “Eu sempre tive esse gancho com a arte nas mídias que trabalhei, e trabalhei em praticamente todas elas. Apresentei o programa Arte e Tradição na TV Câmara de Caxias e lá eu levava grandes gaiteiros que já eram famosos, conjuntos novos que estavam começando, conjuntos velhos, isso formava uma integração na música tradicionalista. O jornalismo na minha vida foi um erro muito interessante, ele agregou valor à minha arte e me fez enxergar mais o lado social, e valorizar as pessoas”.

Da música para o fogão
 “Me viro muito bem na cozinha.”

Poucos sabem, mas das mãos que reproduzem as canções, outras habilidades também vão surgindo. Nas horas vagas a cozinha é o lugar com que o gaiteiro mais se identifica. “Gosto muito de cozinhar, não só de fazer aquela “comida de sempre”, gosto de criar pratos elaborados, molhos especiais. Me viro muito bem na cozinha”, revela.
Quando não está praticando sua música nem na lida com os cavalos, os filmes também detém a atenção de Israel. Filmes de época, de ação e alguns nacionais que retratam a saga gaúcha são seus preferidos.

As influências
“Todos os lugares onde as pessoas gostarem e receberem bem a minha música serão especiais para mim”.

Seus gostos e influências musicais são bastante variados. Vão desde Paulito Barbosa, Soledad, Irmãos Bertussi até Paula Fernandes, música country, moda de viola, sertanejo de raiz, samba de raiz e música clássica. Entre suas canções prediletas está o Cancioneiro das Coxilhas, dos Irmãos Bertussi. “Essa música marcou minha vida”, diz.
Muitos são seus ídolos, entre eles admira Luiz Carlos Borges, diretor do Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore. “Em termos de música, pois ele toca em vários lugares, qualquer estilo, e também como pessoa, procuro me espelhar nele”, acrescenta.
Até hoje muitos foram seus shows, bailes e apresentações. Israel passou por diversos lugares e todos representam muito para ele. “Gostei muito de ter tocado no Paiol, em Caxias do Sul, no Teatro Guaíra, em Curitiba, junto com Osvaldinho do Acordeon, Renata Sbrigui, Frank Marroco, Paolo Gandolfi e Marco Patarime. Mas todos os lugares onde as pessoas gostarem e receberem bem a minha música serão especiais para mim, desde um galpão de chão batido até um lugar como o Teatro Guaíra”, afirma.

Os planos e os medos
“Eu não preciso de muito para ser feliz, mas de um pouquinho verdadeiro”.

Segundo Israel, seu maior sonho é alcançar a evolução sem perder a tradição. Para este ano de 2012, o gaiteiro afirma, “Quero tocar muito, viver minha música intensamente”. E confessa, “eu não preciso de muito para ser feliz, mas de um pouquinho verdadeiro. Como já disse, o futuro é o que eu planto hoje; acho que estou plantando coisa boa”. 
Apenas uma coisa lhe causa temor. “Tenho muito medo da ignorância da humanidade, de como as pessoas podem ser más e cruéis por isso”, comenta.

A gratidão e o cuidado com os que ama
“Espero que quando eu ficar velho também tenha alguém que faça um pouco por mim, que não me deixe atirado num canto como uma gaita velha e sem serventia”.

A sensibilidade ultrapassa os limites musicais, ao conhecer melhor esse gaiteiro de jeito discreto e introspectivo ele vai aos poucos revelando o amor e a gratidão por quem lhe é importante. “Amo muito minha família, meus bichos, minha música. Cuido das pessoas que fizeram muito por mim. Para os meus avós procuro fazer um pouquinho, isso é o mínimo que posso fazer por quem me tornou o que sou hoje. Espero que quando eu ficar velho também tenha alguém que faça um pouco por mim, que não me deixe atirado num canto como uma gaita velha e sem serventia”.

O professor
“Eu encilho o cavalo, mostro a invernada e as reses, mas a campereada é por conta deles”.

O acordeonista é também professor. Ensina várias pessoas, de várias idades, homens, mulheres, jovens e crianças. Na relação que mantém com seus alunos, ele procura deixá-los à vontade. “Tive um professor que me apresentou o mundo da gaita, as partituras, que me fez ainda mais tomar gosto pela música, mas seu sistema era quase um regime militar”, brinca. No âmbito de ensino-aprendizado, Israel deixa claro qual é o seu papel. “Eu encilho o cavalo, mostro a invernada e as reses, mas a campereada é por conta deles, eles que saberão até onde querem ir”.
Muitos de seus alunos também o acompanham na Associação de Acordeonistas e Gaiteiros de São Francisco de Paula e dos Campos de Cima da Serra, que completará seu primeiro aniversário em abril de 2012. “A tradição dos gaiteiros de cima da serra é única, ímpar, incomparável. Não é por acaso que daqui saíram grandes nomes da música tradicionalista. Até hoje vemos muitos talentos escondidos, não é fácil encontrar tanta gente que toque um repertório tão variado num local tão pequeno, por isso surgiu a Associação”, explica.

O Grande Arquiteto do Universo
“Do espiritismo me convém crer na ideia que tudo acontece por um motivo”.

A espiritualidade é algo muito presente na vida do músico. De batismo católico, mas com muitas pinceladas do espiritismo, ele vai criando a sua própria doutrina. “Acredito que exista o grande Arquiteto do Universo, que criou e planeja as coisas. Do espiritismo me convém crer na ideia que tudo acontece por um motivo, de que as pessoas que estão na nossa vida têm um motivo de estar, mas penso que é preciso viver o hoje, o agora da melhor maneira possível, vai saber se existe mesmo o outro lado, ou outras vidas, afinal, ninguém voltou ainda para contar”, brinca.

As Anitas de Israel
 “Ela é guerreira e batalhadora, tudo isso sem perder a feminilidade”.

-“Já terminou? Ah, eu tinha preparado uma resposta na ponta da língua se tu fosse me perguntar do amor.” (risos)
-“Então tá, e o amor Israel?”
Apesar do tom de graça, o acordeonista leva o assunto muito a sério e conta pausadamente, dando ênfase a cada nome. “Ana-Maria-de-Jesus-Ribeiro, a Anita Garibaldi. Ela é aquela mulher que vai pra guerra junto contigo, que cuida dos ferimentos dos soldados, ela é guerreira e batalhadora, tudo isso sem perder a feminilidade. Ela constrói as coisas contigo, cuida dos filhos, é uma esposa dedicada, é uma amiga, enfrenta todos os problemas junto contigo e ainda assim não perde a ternura e a delicadeza”.
-“E essa Anita já apareceu na tua vida?”
- “Bom, na verdade várias Anitas passaram pela minha vida, cada uma com algumas dessas características, mas não eram Anitas completas. Sou muito cuidadoso... essa Anita de verdade eu não encontrei ainda”.

15/Fev/2012 

*Texto e foto KARINE KLEIN/ ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO

Nenhum comentário:

Postar um comentário